Lélia Gonzalez, uma intelectual ameafricana

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Lélia Gonzalez, uma intelectual ameafricana
Lélia Gonzalez em Dacar, capital do Senegal, em 1979 (Foto: Acervo Lélia Gonzalez)

 

Intelectual, feminista e militante antirracista, Lélia Gonzalez é figura paradigmática na esfera pública no contexto das lutas contra a ditadura militar e pela democratização do Brasil. Enredada numa teia complexa de personagens, temas e mobilizações contra o regime autoritário instituído com o Golpe militar de 1964, Gonzalez é personagem expressiva na história política do Brasil. Sua trajetória e seu pensamento só podem ser entendidos se considerarmos as dimensões coletivas que perfazem os protestos de rua, a imprensa alternativa, as organizações civis, as interações entre Estado e movimentos sociais e os partidos políticos na transição democrática do país. 

Não só o ambiente nacional, mas também as grandes transformações culturais e políticas no mundo foram acompanhadas por Lélia Gonzalez, em particular aquelas ocorridas na América Latina, América do Norte e nos países africanos, a exemplo das lutas indígenas, das organizações antirracistas, dos movimentos de mulheres, das mobilizações pelos direitos civis, dos protestos dos Panteras Negras, além das lutas pelas independências nacionais e pelo fim do apartheid na África do Sul. Nessa teia complexa de ideias e redes transnacionais de ativismo, o pensamento de Lélia Gonzalez tem uma perspectiva democrática e plural, com horizonte anticolonial, antipatriarcal e de crítica ao capitalismo.

Hoje, Lélia Gonzalez é referência para diversos coletivos antirracistas e organizações feministas no Brasil, porém seu pensamento ainda é pouco conhecido na academia nacional. Para as novas gerações, Gonzalez tornou-se ícone do feminismo negro brasileiro, sendo cada vez mais influente na América Latina e nos Estados Unidos, e recém-descoberta pelo feminismo europeu, especialmente o francês. Dessa produção renovada sobre seu pensamento, duas abordagens merecem destaque. A primeira delas dá ênfase ao caráter descolonial de seu pensamento, em particular destacando a crítica ao viés eurocêntrico das Ciências Sociais e do feminismo ocidental. Outra linha de pesquisa revisita os trabalhos da autora mostrando sua perspectiva interseccional, envolvendo as dimensões da dominação sexual, de classe e de raça articuladas nas formas de opressão e hierarquização racial, bem como na formação de identidade de afirmação coletiva. Ambas as análises mostram-se bastante promissoras quanto à atualidade e à contextualização da produção intelectual de Lélia Gonzalez no país, assim como a sua interlocução nacional e internacional.

Sua produção escrita e também sua trajetória têm recebido mais atenção na última década. Nesse sentido, dignas de destaque são as duas biografias sobre Lélia Gonzalez e dois filmes – o primeiro deles com depoimentos de pesquisadores, familiares e ativistas que conviveram ou receberam influências intelectuais e políticas dela e que já se encontra no YouTube, sob o título Lélia Gonzalez: o feminismo negro no palco da história. Na mesma direção, a cineasta Beatriz Santos Vieira, formada pelo curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), realizou o documentário Em busca de Lélia, cujo título revela os anseios geracionais por maior conhecimento dessa intelectual, anseios negligenciados pela academia brasileira.

Outros esforços têm sido feitos para dar visibilidade à pensadora. Um prédio da Organização das Nações Unidas (ONU) em Brasília foi inaugurado em 2015 com o nome de Lélia Gonzalez, em sua homenagem. Movimentos feministas e antirracistas também têm se empenhado na divulgação de sua figura em várias partes do país, por meio de uma rica exposição fotográfica e documental do projeto Lélia Gonzalez: o feminismo negro no palco da história, organizado por Schuma Schumaher e Antonia Ceva, que circulou entre 2014 e 2016 e rendeu várias reportagens escritas e televisivas. A União dos Coletivos Pan-africanistas organizou em 2018 a grande maioria da produção de Lélia Gonzalez em ordem cronológica, sob o título Primavera para as Rosas Negras, o que foi fundamental para difundir o pensamento da intelectual ameafricana.

No ano passado, um grande evento realizado no Auditório Ibirapuera levou milhares de pessoas para assistir à intelectual marxista Angela Davis, que conheceu pessoalmente Lélia Gonzalez. Em discurso, a ex-Pantera Negra disse que os brasileiros e as brasileiras deveriam conhecer mais suas pensadoras negras, entre as quais Lélia Gonzalez, cujos escritos, aliás, têm muitas afinidades intelectuais com a produção da feminista estadunidense, a exemplo da influência do marxismo e do feminismo para entender a realidade das mulheres racializadas, em especial as negras. Em 2 de fevereiro de 2020, quando Gonzalez completaria 85 anos, a empresa Google lhe rendeu uma homenagem com um Doodle, uma mudança temporária em seu logotipo para homenagear personalidades e eventos especiais: grafou no logotipo do Google a imagem estilizada de Gonzalez. Imagem essa que partiu da fotografia tirada da autora num congresso da Associação dos Estudos Latino-americanos (Lasa) em abril de 1979, em Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos.

Neste ano, em 2020, a própria Lasa, o maior encontro acadêmico do mundo voltado para a produção científica sobre a América Latina, decidiu homenagear a intelectual brasileira nomeando seu evento de Améfrica Ladina, termo que Lélia Gonzalez usava para se referir à formação do continente, marcando suas influências indígenas e africanas, além da ibérica. Além de dar nome ao grande evento internacional, Lélia Gonzalez também terá lugar em mesas especiais. Na esteira desse evento, um número especial da revista Lasa Forum foi publicado para discutir as ideias de Gonzalez ao longo de sua vida intelectual, dando destaque a suas reflexões sobre rupturas com o pensamento ocidental e aos novos modos de olhar para as formas de vida e de resistência na região, rompendo com as fronteiras linguísticas e nacionais.

Mas, afinal, quem é essa mulher que tem ganhado cada vez mais destaque na renovada cena política latino-americana?

Nascida no ano de 1934 em Belo Horizonte, Minas Gerais, Lélia Gonzalez teve origem em uma família pobre, sendo a mãe de ascendência indígena e o pai, negro. Na infância mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. Estudiosa, Lélia Gonzalez foi aluna brilhante de um dos colégios mais tradicionais e renomados do Brasil, o Pedro II. Do colégio direcionou-se à universidade, onde obteve os títulos de bacharela em Filosofia, História e Geografia. Formada, tornou-se professora de importantes estabelecimentos de ensino superior cariocas, como a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e a Pontifícia Universidade Católica, a PUC, no Rio.  

Como professora universitária, engajou-se na luta política pela redemocratização do Brasil. Gonzalez notabilizou-se pelo visceral envolvimento com os movimentos sociais de oposição ao regime militar, por isso foi vigiada pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão de controle e repressão dos agentes contrários ao regime instituído. Como ativista, integrou uma das mais influentes organizações cariocas antirracistas, o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN); foi fundadora do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU) em 1978; organizou um dos primeiros coletivos brasileiros de mulheres negras, o Nzinga; colaborou com a Escola de Samba Quilombo, importante espaço de resistência cultural contra a mercantilização e a alienação da cultura negra, produzida pelas grandes empresas de comunicação e de entretenimento. Além de numerosas contribuições para a imprensa alternativa, grupos teatrais e blocos afros, Lélia Gonzalez assessorou o cineasta Cacá Diegues em seu filme Quilombo, aclamado pela crítica internacional. Nas artes performáticas, foi decisiva na produção dramatúrgica de Hilton Cobra. Em síntese, a interface entre cultura e política foi a forma de atuação de Lélia Gonzalez. Afinal, para ela a linguagem cultural precisava ser subvertida, já que o sexismo e o racismo eram as marcas profundas da cultura de dominação brasileira e latino-americana.

Lélia em reunião no Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), Rio de Janeiro
Lélia em reunião no Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN), Rio de Janeiro (Foto: Januario Garcia)

De sua produção intelectual, além de dezenas de artigos em revistas acadêmicas e em jornais da imprensa alternativa, a autora nos legou a organização de três livros, todos já esgotados e sem reedição. São eles: Lugar de negro, escrito em parceria com o sociólogo argentino Carlos Hasenbalg, de 1982; O lugar da mulher, organização que partilhou com várias autoras feministas; e Festas populares no Brasil, um ensaio fotográfico com comentários críticos da autora, publicado em 1987.

Destaque-se ainda sua inserção em organizações partidárias. Embora tenha perdido as duas eleições em que concorreu no Rio de Janeiro, Lélia Gonzalez, assim como uma parcela significativa das gerações de ativistas de sua época, viu nos partidos políticos um meio de ter acesso ao Estado, para levar a temática racial e de gênero ao âmbito da política institucional, seja na forma parlamentar, seja como participação em conselhos. Foi pensando nisso que se tornou assessora de Benedita da Silva em seu primeiro mandato legislativo no Rio de Janeiro e também colaborou com os deputados negros durante o processo constituinte (1986-88); além disso, fez parte do primeiro quadro de integrantes do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, criado em 1985. Assim, seu trânsito nos movimentos sociais e partidos revelava-se não apenas um projeto pessoal, mas, sobretudo, um entendimento coletivo de que as demandas e reivindicações sociais dos movimentos dos quais fazia parte deveriam estar no centro da agenda do Estado brasileiro.

Nesse enredo político, que envolveu a passagem do regime autoritário para a democracia, Gonzalez atuou vivamente em redes nacionais de ativismo político e refletiu de forma sistemática sobre as formas de dominação colonial e patriarcal ainda vigentes e operantes na cultural e sociedade brasileiras. Bastante conhecedora e crítica da tradição das Ciências Sociais no Brasil, Gonzalez fez parte daquela camada de intelectuais brasileiros que construiu rotas e redes alternativas para pensar a realidade nacional e da diáspora negra, especialmente na Améfrica Ladina.

FLAVIA RIOS é doutora em Ciências Sociais pela USP e professora adjunta da UFF


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